Desde a aprovação da Lei 9.790/99 ela continua a suscitar debates. É verdade que a lei não solucionou todos os antigos problemas, não provocou até agora nenhuma grande revolução. Todavia, é inegável que seus grandes benefícios estão ainda por ocorrer, ou, pelo menos, por se materializar. A Lei 9.790/99 é talvez o mais importante passo em matéria legal do terceiro setor no Brasil, e, também, o primeiro movimento de certa expressão. É realmente preciso entendê-la melhor.
1ª vantagem: o título de OSCIP
A lei se preocupa primeiro em identificar quem faz parte do terceiro setor e quem não faz. Foi um passo importante. Trata-se de uma questão de identidade e as entidades de tipo novo, as que se autodenominam ONGs, nunca se identificaram completamente com o setor filantrópico antigo. Não que houvesse alguma incompatibilidade ou vontade de se distinguir, mas porque em matéria legal desde tempos idos o poder público tem reconhecido as entidades de caráter assistencial, puramente caritativo e típico de movimentos religiosos. Digo isso genericamente. Mesmo o título anterior que mais se parecia com o de OSCIP - o de utilidade pública - falava de utilidade e não de interesse, de importância, de reconhecimento.
As entidades de estilo novo se reconhecem por atuar em campo notoriamente público, de interesse público. Representam a sociedade civil organizada, agrupada em entidades de direito privado, que somente existem para atuar no campo definido genericamente como público. O título de OSCIP, portanto, é uma vitória em si.
Diferença entre título e os outros
Antes da Lei 9.790/99 já havia outros títulos e registros no Brasil. Falar de terceiro setor é falar também dos títulos de utilidade pública, do registro no CNAS, do certificado de filantropia. São títulos bons, conhecidos e concedem certos benefícios, especialmente a permissão de abater doações no Imposto de Renda (utilidade pública) e isenção de contribuição patronal ao INSS (filantropia).
Já o título de OSCIP não concede nada por si só, e contrapôe-se aos outros porque exige, a partir de março de 2001, exclusividade. Em 23 de março de 2001 quem for OSCIP não poderá continuar a sê-lo ao mesmo tempo em que é de utilidade pública ou entidade filantrópica. Terá de optar entre a qualificação de OSCIP e as demais.
Todavia, o fato de o título de OSCIP não significar por ora nenhum benefício fiscal ou tributário não quer dizer que não se pretenda estender estes benefícios às entidades que venham a portá-lo. É fato que até agora não se conseguiu qualquer benefício fiscal, mas a luta em obtê-los continua, é por natureza longa e já se contabilizam algumas pequenas vitórias. No campo do microcrédito (ou microfinanças), por exemplo, o Banco Central já reconheceu que as ONGs que sejam OSCIP não incorrem na lei de usura. Isso é fundamental para todo aquele que pretenda praticar contratos de mútuo (empréstimo, etc.) e tem compelido as ONGs que atuam em microfinanças a se transformarem em OSCIP. O Viva-Cred, por exemplo, já obteve o título.
Outro fator fundamental de distinção entre os títulos antigos e o novo é a forma de obter este último. Os procedimentos burocratizados para obtenção dos títulos de utilidade pública e de filantropia transformaram-se na via crucis das ONGs. Ao se tentar obter o título de utilidade pública federal, por exemplo, se for negado, a ONG perde o direito de pleiteá-lo por certo período. No título de OSCIP não somente não há este entrave como, também, o processo não se baseia num interminável anexar de documentos e cumprimento de exigências. Os documentos para se obter o título são poucos, simples de se conseguir, e a divisão que concede os títulos deve se manifestar em no máximo 30 (trinta) dias, negando ou aprovando o pedido. Pretende-se o fim da via crucis.
2ª vantagem: o Termo de parceria
Falar de terceiro setor é também falar da forma como o poder público e a sociedade interagem. Nesta interação, há formas mútuas de repasse de bens, tecnologias, etc. Já faz algum tempo o poder público notou que em muitos campos, embora seja de sua obrigação constitucional, sua atuação não é satisfatória ou, ao menos, é menos eficaz do que a de outros personagens. As ONGs tem atuado com desenvoltura e extrema competência nos campos da educação, saúde, defesa da infância, ambientalismo, etc. Assim, tornou-se praxe o repasse de verbas públicas para aplicação em programas de natureza pública a serem desenvolvidos por entidades de direito privado.
Neste sentido a Lei 9.790/99 criou uma forma de repasse, o termo de parceria, que pretende ser um veículo legítimo e adequado ao repasse de verbas públicas para entidades de direito privado.
Diferença entre o termo de parceria e os outros métodos de repasse de verbas públicas
Antes da Lei 9.790/99 a forma mais popular de interação financeira do setor público com o privado era o convênio. Dotado de regulamentação experimentada na prática, o convênio não era, contudo, inteiramente adequado para o que se pretendia.
A princípio, convênio é a forma de pacto entre pessoas de direito público. Portanto, todo convênio tem que respeitar as regras adequadas ao poder público, todas elas. Ao aplicar a metodologia de convênios ao setor privado, a lei não fez grandes concessões, e exigiu do setor privado a mesma natureza de prestação de contas que vale para o setor público. Desnecessário dizer o quão penoso se tornou manter um convênio.
Também a prestação de contas em si era somente uma prestação formal de contas, um infindável gasto de papéis que deixaria qualquer ambientalista apavorado. Há os que consideram que a mata atlântica está desaparecendo por conta dos convênios. Tornou-se consenso entre as ONGs que o tempo que se gasta com prestação de contas em convênio é contra-producente no que diz respeito à atividade conveniada. Depois, e principalmente, o convênio não prevê o concurso de projetos e, además, sua prestação de contas não leva em consideração os resultados obtidos.
Já o Termo de Parceria tenta evitar tudo isso com uma prestação de contas que privilegie os resultados efetivamente obtidos, menos burocratizada, e possibilita o concurso de projetos com a escolha da entidade mais capaz.
3ª vantagem: a remuneração de dirigentes
O artigo 4°, VI da Lei 9.790/99 institui a possibilidade de se remunerar dirigentes. Pode parecer contraditório, mas antes da lei já era possível remunerar dirigentes. O que mudou não foi a possibilidade de remunerar dirigentes, mas o conceito de finalidade não lucrativa.
Já dissemos várias vezes em outros artigos que a remuneração de dirigentes, em si, não faz com que uma entidade passe a ter ou não finalidade não lucrativa. A finalidade não lucrativa é um conceito jurídico doutrinário, não legal, que se baseia no fato de a organização não distribuir o resultado positivo de suas operações (lucro) entre os sócios. Ou seja, a finalidade não lucrativa não depende da remuneração, mas da não distribuição de lucros. Remuneração é contrapartida a trabalho, lucro é contrapartida a participação societária, responsabilidade e risco. São conceitos distintos.
Contudo, se seguir esta orientação, a organização que remunerar seus dirigentes passará a ter problemas... como veremos a seguir.
Diferença do conceito de não lucratividade anterior
Antes da Lei 9.790/99 a legislação brasileira, embora não definisse o que venha a ser "finalidade não lucrativa" para o mundo do Direito, definia a finalidade não lucrativa para efeitos de certas leis, especialmente tributárias.
É uma constante encontrarmos em textos legais dispersos que a finalidade não lucrativa, para efeitos próprios de benefícios daquela lei específica, depende da não distribuição de lucros e não remuneração de sócios.
Assim, na prática, acaba se proibindo a remuneração dos dirigentes e criando uma cortina de trejeitos e jeitinhos, onde o sócio da organização deve deixar de ser sócio para receber a justa remuneração por seus serviços.
Foi nesse ponto que a Lei 9.790/99 inovou, ao reconhecer pela primeira vez em uma lei que a finalidade não lucrativa não depende da não remuneração, contudo o fez somente para os efeitos daquela lei.
Logo, quem por ora resolver remunerar os dirigentes não terá direito à isenção de Imposto de Renda, por exemplo, embora possa concorrer ao título de OSCIP. É o primeiro passo de uma longa caminhada.
4ª vantagem: O controle social
Uma das grandes características das entidades de que estamos falando, as ONGs, é que, em geral, o seu compromisso público é tão profundo que não temem de sorte alguma prestar contas, pelo contrário, temem não prestá-las. Como vimos antes, prestar contas em convênios é um ato difícil e não necessariamente de resultados compreensíveis para o setor privado.
Uma grande vantagem da Lei 9.790/99 é que tornou oficialmente possível uma contínua prestação de contas por métodos que se baseiam mais na eficiência/eficácia do que na formalidade. O acesso público irrestrito às contas das organizações é uma grande vitória delas, por contraditório que possa parecer, porque desvenda a todos o compromisso do setor com a transparência e com o interesse público.
A lei 9709/99 disciplina formas de prestação de contas bastante revolucionárias, instituindo a publicidade e, ainda, submete o título ao questionamento público. Por lei, qualquer cidadão pode requerer judicial ou administrativamente a cassação do título de OSCIP. Identifico esse dispositivo como uma enorme vitória do setor.
Diferença entre o novo modelo e os anteriores
Quanto à questão da prestação de contas com controle social, o convênio e as formas anteriores de relacionamento entre o setor público e o privado estão muito aquém do que foi instituído pela Lei 9.790/99, são profundamente privatistas e privilegiam a capacidade discricionária da entidade em manter sigilo de suas operações, ou seja, não prestar contas ao público.
Conclusão: a água e o vinho Como disse anteriormente a primeira e grande vitória da Lei 9.790/99 é o reconhecimento de uma identidade nova. Todas as outras são, do meu ponto de vista, conseqüência deste ato de reconhecimento. Ao distinguir-se das outras pessoas de direito privado, as OSCIPs estão inaugurando um capítulo novo na história brasileira e seguindo uma tendência mundial. Considero pessoalmente que, embora os benefícios fiscais e tributários ainda não tenham chegado, nesta longa caminhada demos o passo fundamental, o primeiro. É preciso agora que o poder público, a sociedade e as organizações do terceiro setor resolvam comprar a briga. Todas as outras vitórias dependem do nosso compromisso com as causas que nos motivam e nos distinguem.